domingo, 22 de fevereiro de 2009

Slumdog

Devo a Slumdog Milionaire a descoberta de uma nova estratégia para lidar com eventos traumáticos que, até ao dia de ontem, eram lidados com recurso a acções paliativas e de sinal contrário. A angústia filosófica que se abateu sobre mim acerca do paradeiro da equipa do Benfica na segunda parte do jogo de Alvalade (Alexandra Solnado, alguém?) foi visceralmente substituída pela angústia filosófica que se abateu sobre mim sobre o paradeiro do mínimos olímpicos que supunha estarem presentes nos processos de criação das listas dos prémios cinematográficos. Mesmo colocando a hipótese de 2008 ter sido um ano falhado para a indústria do cinema (o que nem é verdade) escapa-me que se tenha de premiar o menos mau dos concorrentes em vez da não atribuição de prémio «por falta de qualidade das entradas». Mas nem isso é verdade, nem serve para apaziguar a minha relação com a humanidade que, julgava eu, é constituída por milhões de outros indivíduos a quem eu sou obrigado a chamar de «semelhantes».

O burburinho crítico (e as ofertas de pancada lá no Ípsilon) que se levantou sobre Slumdog Millionaire centrou-se a volta dos supostos méritos ou deméritos morais do filme, sobre a legitimidade intelectual do exercício de exploração mais ou menos fútil da redução de uma realidade complexa a pano de fundo estético de um suposto épico moderno. A lógica é dickensiana e o objectivo é forçar (e forçar aqui é eufemismo) a simpatia do espectador por Jamal Malik, um jovem oriundo da merda dos bairros de lata à procura do amor (o jovem, não os bairros de lata, esses não estão à procura de nada, muito menos de Danny Boyle). Haveria dois caminhos possíveis para absolvição de Slumdog Millionaire. Das duas uma: ou estaríamos perante um exercício que utiliza um background problemático apenas para enquadrar uma história de amor tocante (do geral para o particular), ou perante um exercício sobre uma história de amor banal utilizada para denunciar um contexto social e político digno de denúncia (do particular para o geral.) Que Danny Boyle consiga falhar com igual estilo nas duas vertentes só deveria ser objecto de reflexão se a pura estética do filme não o desqualificasse à partida como objecto de cinema. A estrutura do filme, com os seus planos oblíquos, a sua montagem frenética, a sua edição de som maniqueísta (chega de comboios, já percebemos que eles são ruidosos), a sua lógica fundamental de fuga para a frente, parece escolhida para esconder a ausência de ideias ou de gestos dignos desse nome. A ideia é agitar agitar agitar até o espectador se sentir, lá está, agitado.

Depois há todo o portfolio de cenas que escapam a qualquer tentativa de enquadramento no panorama geral do bom gosto: a cena dos turistas americanos («You wanted do see the real India? This is the real India» «And this is the real America, son: here you go, take this money»), a cena da morte provocada do irmão do protagonista («God is great»? What the fuck?), ou o mergulho no poço dos excrementos (auto-explicatória), qualquer uma delas uma óptima metáfora do próprio filme. Slumdog Millionaire é um dos filmes mais esvaziados de humanidade a que já tive o privilégio de assistir, e só não é totalmente nulo nesse capítulo devido à dimensão humanitária que assumiu junto da minha existência ao ter transformado, por comparação, a exibição de ontem do Reyes e companhia numa coisa que «não foi assim tão má».

O eventual óscar para melhor filme para Slumdog Millionaire não é só um erro (graças a Deus a história da Academia é uma história de erros): é a substituição de uma ideia de cinema por outra que não só lhe é oposta como abertamente hostil.