domingo, 15 de fevereiro de 2009

Sobre a crítica de cinema

Bruno Nogueira e "Slumdog Millionaire", por João Lopes, que se tem dedicado nos últimos dias, com uma paciência de santo e uma elegância notável , a denunciar uma das características menos nobres da blogosfera (a tribalização do comentário) e a trazer alguma luz sobre a questão. O motivo foi um texto de Luís Miguel Oliveira no Ípsilon sobre Slumdog Millionaire e as reacções que ele provocou. A séries de posts tem gerado frases memoráveis de João Lopes

(...) A mais frequente dessas implicações é a de que o "entretenimento" está para um lado e o "pensamento" para outro. Ora, por mim, acredito numa lógica de constante miscigenação entre uma coisa e outra — nenhum prazer estético é alheio ao seu pensamento, do mesmo modo que qualquer pensamento sobre uma linguagem pressupõe uma ligação activa com algum espaço de prazer. (...)

e de Luís Miguel Oliveira

(...) Não estou habilitado a fazer uma hierarquia da gravidade semântica entre “puta”, “punheta” e “merda”, mas parece-me que venha o diabo e escolha. E se a “punheta” passa no Libération e a “merda” (que ainda por cima está no filme) não passa no Público há alguma coisa de errado com um dos jornais. (...)

frases retiradas quase ao acaso, o que serve para dizer que vale a pena ler tudo. Claro que ninguém me perguntou nada, e é por isso que, respondendo aos anseios do auditório, me preparo para pincelar (é sempre bom «pincelar») todo este regabofe com a minha própria e definitiva visão. Portanto: o celeuma que costuma gerar-se à volta da mesa sobre «o cinema» e «a crítica» é apenas o resultado de dois factores muito precisos, que, para vossa sorte, me preparo para elencar.

1. (Um): A arte comove, e a comocão desarma-nos. O cinema, por ser a mais narrativa das artes, é a arte com maior capacidade de nos expôr ao embaraço. Chorar no E.T. não é currículo que se apresente (atenção, eu não estou a confirmar nem a desmentir que tenha chorado no E.T. nem, já agora, na meia-final do Euro-92 que opôs a Holanda à Dinamarca e que a Holanda, então com a melhor equipa do mundo - Gullit, Van Basten, Rickaard, Bergkamp - acabou por peder nos penalties, não acreditem no que se diz para aí) nem motivo de orgulho para ninguém. Quando um grupo de pessoas se predispõe a discutir determinado filme é raríssimo que daí surja algum resultado interessante, porque o que está em disputa são reacções emotivas a objectos artísticos concretos e não os méritos ou deméritos dos artistas. O que se discute no cinema não é tanto aquilo que ele faz mas aquilo que ele nos faz, e nós sabemos que, infelizmente, não controlamos a evolução do batimento cardíaco, da transpiração ou da tensão muscular. Em última análise, as discussões acaloradas que se geram sobre este ou aquele filme são discussões acerca de nós próprios e da nossa intimidade despudoradamente revelada. O máximo que conseguimos fazer é tentar enquadrar a opinião do outro num conjunto de condições conjunturais que a explique, o que não deixa de ser uma atitude algo condescendente, para que o «confronto» não descambe em «conflito», como diz o João Lopes. E porque, ao contrário da literatura (que não é objecto de tanta tribalização), o cinema é também uma experiência colectiva (ir ao cinema sozinho continua a não fazer parte das actividades socialmente aceites); é, se quisermos, a colectivização da intimidade, uma ideia que arrepia, confesso.

2. (Dois): A inveja. Imaginar que há pessoas que são pagas para ver filmes e escrever sobre eles suscita-nos a maior das reservas motivada por esse sentimento nada nobre que é a inveja. Consigo encontrar aqui um paralelo com a arquitectura: é muito frequente as pessoas dizerem que, se não tivessem escolhido a ________ (inserir profissão) gostariam de ter estudado arquitectura, o que contrasta com a generalizada insatisfação dos arquitectos. Num caso como no outro, a imagem pública dessas actividades é uma deturpação daquilo que elas de facto são. Confundir a crítica de cinema (que como qualquer actividade crítica é dificílima e muitas vezes injusta) com um exercício de opinião sobre o gosto gera facilmente a animosidade geral. O que escapa muitas vezes à compreensão do público é a dificuldade que o crítico tem em não deixar contaminar a sua apreciação crítica pela sua reacção emocional ou, o que talvez seja a mesma coisa, conseguir extrair dessa reacção epidérmica matéria passível de contribuir positivamente para a crítica. É com grande pena e tristeza que assisto com frequência a conversas sobre determinados filmes que começam com a desqualificação a priori da crítica que, talvez paradoxalmente, acaba por ser usada como mapa sugestivo mas ao contrário, o que acaba por não fazer qualquer tipo de sentido: a «crítica» raramente é unânime e coerente como um todo; «a crítica» não existe. Esta hostilidade que agora encontrou terreno fértil nos blogues e nas respectivas caixas de comentários nasce sobretudo de uma incompreensão face àquilo que é a actividade crítica. Um texto crítico sobre cinema não serve para se concordar ou discordar (como também não deveria servir uma conversa entre amigos); serve, isso sim, para enriquecer a nossa experiência enquanto espectadores.

Apesar de tudo, o cinema e respectiva crítica são actividades afortunadas: chegará o dia em que a crítica literária será discutida com tanta paixão aos balcões dos cafés, que as pessoas citarão o «António Guerreiro» e o «Eduardo Pitta» violentamente, que dirão, alto e em bom som, «os últimos livros do Don DeLillo têm sido uma merda», e assim.