João Luís Ferreira em tríptico obrigatório: O Liberalismo e a Arquitectura, 1, 2 e 3. A verdade é que não tem sido fácil conjugar as duas palavras, mesmo por quem o quer fazer desesperadamente (olá). O texto de JLF, sobretudo nas suas segunda e terceira partes, explica o que se passou nos últimos anos no campo da arquitectura e lança uma crítica feroz ao actual estado das coisas e a quem gosta de acusar o «liberalismo» de todos os desastres:
Os arquitectos, espelhos do seu tempo, parecem hoje distantes do concreto existencial em que a vida das comunidades, das cidades ou dos povos se desenvolve. Filhos do internacionalismo estilístico e de uma tecnologia sem fronteiras, actuam sem referência ao que, antes, era fonte e expressão de harmonia. Actuam, sobretudo, em nome de si próprios. É certo, que são sedutores e surpreendentes, pelo menos num primeiro olhar, mas sente-se que cada vez mais produzem todo um tipo de bizarrias que, verdadeiramente, só interessam a si próprios (e, talvez a presidentes de câmaras ou de repúblicas), as quais acabam por ser anuladas, no palco que são as cidades, por outras bizarrias equivalentes. Mas entre bizarrias e voluntarismo, vai-se destruindo e matando o espaço público como espaço de expressão não da personalidade de um arquitecto mas da singularidade de uma comunidade, de um povo ou de uma história, de uma cultura ou de uma civilização.
Percebe-se muito bem, que tanto o direito como a arquitectura lidam com este difícil mas indispensável equilíbrio entre a necessidade de interpretar o que é comum e deixar a liberdade de actuar no que não ponha em causa o compromisso que está na origem da vida em comunidade e que é a garantia da sua perduração. O que é errado é chamar liberalismo a todo o tipo de bagunça que a falta de lei e da sua aplicação vai semeando nas sociedades contemporâneas. O liberalismo não é apenas uma corrente económica, é o sistema da liberdade económica e política (e, por isso, do direito), é a aceitação de que os melhores resultados saem da possibilidade de cada homem agir segundo as suas potencialidades, interesses e talentos, sem que haja qualquer forma de o limitar nesse movimento em nome de proselitismos ou verdades efémeras. Pressupõe que essa acção, simultaneamente, reconheça os interesses e as expectativas do outro: o saber do direito e o saber da arquitectura formaram-se nesse reconhecimento.
Pode o mundo, não perceber os limites e o interesse deste compromisso, mas confundir o livre-arbítrio infinito e a liberdade é um erro que a humanidade já devia ter superado. Porém, perante o cenário em que a arquitectura se exerce como prática dos arquitectos, há dificuldades metodológicas que se lhes apresentam diariamente. O entendimento vulgar de que a arquitectura exige espectacularidade, leva a que aquela ideia de continuidade que sempre existiu nas cidades se perca e todos os edifícios requeiram excepcionalidade, visibilidade e diferenciação. Os arquitectos que se distinguem no panorama internacional são estrelas que pairam acima dos comuns mortais e que lhes impõem obras bizarras que o gosto frágil vai aceitando, incorporando e, por fim, exigindo. Vemos aqui e ali resistências, outras práticas, mas sentimos que a pressão do exemplo do star system (e do circo mediático que o valida) a educar as novas gerações que um dia pensarão a arquitectura como uma arte plástica ou uma arte de espectáculo, vai dissolvendo a substância disciplinar da arquitectura. Veremos, ou antes, já vamos vendo, as cidades a indiferenciarem-se porque ninguém as pensa como o lugar onde o homem encontra a proporção da relação da sua subjectividade com o que universalmente faz dos homens seres afins. Parecendo favorecer o individualismo está a matá-lo. Como vai matando as cidades e a Liberdade.
Fica por saber e defender o que pode ser um ordenamento jurídico do território e um corpo teórico de arquitectura que assentem em pressupostos verdadeiramente liberais. Confesso que tenho tido dificuldade nesta tarefa, mas este texto de JLF já é um avanço. Pena é que as escolas de arquitectura continuem a ser covis ideológicos absolutamente paralisantes, onde se continua a ensinar o «Modernismo» como uma verdade científica e alimentar uma cultura de impunidade crítica aos autores consagrados (ver o texto sobre a exposição de Álvaro Siza no Ípsilon do passado sábado). Um dia lá chegaremos.